Pelotas, do salgado ao doce
Dois séculos atrás, era no mês de outubro que se formavam as primeiras tropas de gado com destino a Pelotas, o maior centro sulino de produção de charque (carne salgada e seca ao sol), cuja safra se prolongava de novembro a maio. Das bandas do Rio Uruguai, um grupo levava até 45 dias para chegar à Tablada pelotense, onde os bois eram vendidos à vista aos charqueadores.
Donos de escravos, barcos e contatos externos, os charqueadores mais fortes tinham “plata” suficiente para comprar e abater até 70 mil bois por temporada. Relatos de viajantes estrangeiros descreviam o contraste: enquanto as charqueadas exalavam um fedor pegajoso do verão ao inverno, o centro da cidade dava-se ares e costumes europeus do outono à primavera. Em banquetes e saraus, a elite pelotense degustava os doces cuja fabricação, décadas depois, constituiria a maior tradição local. Prestes a completar 200 anos (em 2012), a cidade prepara uma festa para contar como migrou da salga de carne para a cultura do doce.
O extinto polo salgado sobrevive em casarões restaurados e chaminés perdidas às margens dos rios vizinhos, onde chegaram a operar simultaneamente 37 charqueadas. A primeira foi fundada em 1780 por um empresário cearense – um retirante endinheirado. As últimas se sustentaram até o início do século XX. Fecharam aos poucos, abatidas pelo fim da escravidão (1888) e pela construção de uma ferrovia (1884), que atraiu novas charqueadas (e, depois, frigoríficos) para Bagé, centro geográfico do Pampa pecuarista. Ex-moradias dos charqueadores, os casarões remanescentes servem hoje como escritórios rurais, residências ou hotéis engalados na Rota das Charqueadas.
Arquitetos, historiadores e turismólogos que se debruçaram sobre o assunto concluíram que o polo doce tem raízes tão antigas quanto o salgado, posto que remonta à tradição da indústria artesanal da confeitaria portuguesa. Um estudo antropológico feito pela Universidade Federal de Pelotas concluiu que fazer doces finos ou de bandeja era uma das ocupações da mão de obra doméstica na entressafra do charque, de maio a novembro. Havia fartura de açúcar – trocado por charque com o nordeste brasileiro. A doçaria pelotense foi enriquecida, na segunda metade do século XIX, pelos sítios de colonos alemães, que abasteciam a cidade com ovos e frutas como pêssego, figo e marmelo. Já nos anos 1950, se explorava o slogan segundo o qual Pelotas fabricava “os doces que mais viajam no Brasil”. Prosperou, na época, a indústria de conservas.
A tradição doceira está preservada pela realização, no inverno, da Fenadoce, que nasceu em 1986 em bancas emprestadas pela Feira do Livro. No site da feira, em que são apresentadas receitas dos doces mais famosos, são diferenciados os “finos” dos “coloniais”. Estes seriam os cristalizados, as geleias e tudo aquilo vindo de hortas, pomares e roças. Os finos seriam fruto do refinamento de uma arte culinária voltada para eventos sociais. No começo, eram pequenos – os bocados, com sabor específico: ovos, leite, coco, abóbora, nozes, etc.
Com a passagem do tempo e a incorporação do leite condensado, os doces se tornaram grandes para garantir a sobremesa, sustentar lanches de rua ou acompanhar o chá em confeitarias. Nada muito diferente do que acontece em quaisquer cidades de médio e grande porte, onde a doçaria tradicional (dos tachos de cobre e fogões a lenha) vem dando lugar à indústria de doces feitos em panelões a vapor. A diferença é que, em Pelotas, o hábito, além de tradição, virou negócio capaz de revitalizar pontos comerciais apagados.
No último inverno, foi aberta na esquina mais movimentada da praça central da cidade o segundo café-confeitaria da doceira Márcia Aquino. Profissional há 17 anos, Márcia confirma que “fazer doce é um bom negócio, mas dá muito trabalho”. Com mais de 40 pessoas empregadas em suas duas lojas, ela faz parte de uma geração de empresárias que, há dois anos, apoiada pelo Sebrae, fundou a Associação dos Doces de Pelotas.
Apenas dez doceiras profissionais fazem parte da organização, cujo objetivo inicial é obter do Instituto Nacional de Propriedade Industrial um selo de procedência geográfica. Meta difícil, pois não apenas em Pelotas se fazem os chamados doces pelotenses, cuja origem portuguesa sofreu outras influências. Também não se sabe o alcance socioeconômico da doçaria.
No levantamento feito de 2006 a 2008 para subsidiar o registro oficial da doçaria pelotense como patrimônio cultural brasileiro, a Universidade Federal de Pelotas absteve-se de estimar quantas pessoas se sustentam fazendo doces (e salgadinhos) sob encomenda. Mais do que em qualquer cidade brasileira de raízes portuguesas, fazer doce em Pelotas tornou-se atividade econômica para milhares de pessoas, que herdaram o ofício de mães, tias e avós. A maioria, formada de mulheres que trabalham em casa, não faz questão de notoriedade – até prefere operar sem alarde, à margem do mundo oficial.
Fonte: Globo Rural